20 de dezembro de 2012

A prisão dos réus do Mensalão no recesso: pode Arnaldo?

O Procurador-Geral da República apresenta no primeiro dia do recesso pedido de prisão dos réus da Ação Penal 470.

Por mais que eu me esforce, não encontro fundamento jurídico a fundamentar eventual (quase certa) decisão que as determine.

Só conheço duas modalidades de prisão no Brasil: aquela que decorre de sentença judicial transitada em julgado ou as diversas modalidades de prisão cautelar.

A primeira hipótese não se aplica ao caso: nem houve trânsito em julgado, tampouco determinação de prisão pelos juízes de conhecimento (o Pleno do STF).

A segunda hipótese também não: dificilmente o PGR terá fundamento para determinar a prisão de três dezenas de réus, com a individualização que o próprio STF vem exigindo para esse tipo de prisão.

Pior: por mais que eu me esforce, não encontro norma que autorize o julgamento monocrático por Joaquim Barbosa.

Em se tratando de prisão decorrente de condenação, findo o julgamento e não havendo decisão acerca da prisão, esse tema só pode ser novamente apreciado em sede de recurso. Como o interesse é do PGR, os embargos declaratórios por omissão seriam o caminho juridicamente correto.

O Presidente, evidentemente, não poderá julgar tais embargos monocraticamente. Aliás, sequer há prazo aberto, considerado o fato de que sequer houve publicação do acórdão.

Em se tratando de prisão cautelar, melhor sorte não resta ao PGR e a JB.

O Regimento Interno prevê que o Presidente poderá julgar questões urgentes no período de recesso.

Nada menos urgente do que o pedido de prisão de pessoas que responderam soltas a ação penal cuja sentença não transitou em julgado. É tão pouco urgente que Gurjô esperou calmamente o começo do recesso. Fosse urgente, teria interpelado o Presidente, na última sessão, e instado o Plenário a decidir sobre o tema.

Se minhas hipóteses estiverem corretas, e a preponderar a notícia de que o pedido do PGR está mesmo ligado à condenação, não é de se descartar a figura do crime de responsabilidade, pois tratar-se-ia de alteração, que não pela via de recurso, de decisão proferida pelo Tribunal.

Não que isso importe. Se a Constituição é o que o STF diz que é, o que dizer do Código de Processo Penal e do Regimento Interno?

Meros detalhes a decorarem o fim do mundo.

19 de novembro de 2012

Tá tudo dominado: a propósito da entrevista de Roxin

O grupo musical Furacão 2000 emplacou um hit repetido ad nauseam pelas rádios, dando ensejo a paródias diversas, chamado Tá Dominado. A letra é muito simples, tendo como forte o refrão: "tá dominado, tá tudo dominado".

Inevitável eu pensar nessa música toda vez que ouço a cantilena da teoria do domínio do fato, invocada pelo Procurador da República, empregada como ratio decidendi por alguns Ministros e papagaiada aos quatros ventos pela imprensa brasileira. 

De fato, tá tudo dominado. 

O STF não vai recuar um único milímetro com a afirmação de Claus Roxin atestando o óbvio: a teoria do domínio do fato, na sua doutrina, não é um modo de condenar sem provas ou em nome do "tinha que saber". Nem que uma seleção de 11 penalistas alemães escalada por Cesare Beccaria (só de brincadeira, imaginemos Feuerbach, von Liszt, Beling, Radbruch, Welzel, Mezger, Jescheck, Roxin, Hassemer, Neumann e Tiedemann) entrasse na reunião do Pleno afirmando que a teoria do dominío do fato não aplica à ação penal n. 470, ainda assim o STF não recuaria nem um milímetro em sua posição.

A mídia não vai recuar um único milímetro com a afiirmação de Claus atestando o óbvio. Para tanto, seria preciso colocar em questão o principal fundamento (?) da condenação de José Dirceu, o Lord Valdemort da opinião publicada.

As fundamentações das sentenças penais não vão recuar um único milímetro com a afirmação de Claus atestando o óbvio. O julgamento da AP 470 ao vivo e em cores escancara algo já sabido pelos operadores do sistema: o juiz forma sua convicção e corre atrás de uma fundamentação. O Ministro Eros Grau o assumia publicamente. Não vou debater se deve ser assim ou não. A mim interessa mais o que pode servir como fundamentação e qual o limite da relação jurisprudência e doutrina. Ao juiz simpático à teoria do domínio do fato tal como manejada pelo STF, caberá recuar diante do que disse Roxin? Ele está de alguma forma dependente dos contornos que a doutrina oferece a um instituto? Tenho que sim, em parte; mas pouco importa, pois eles, em peso, entendem que não.

Tudo continua como dantes no quarte de Abranches. Os que desconfiavam do uso da teoria do dominínio do fato, Roxin apenas reforça aquela sensação; aos seus defensores, caberá sempre esposar uma variação da teoria ou iniciar a doutrina brasileira da teoria do domínio do fato; aos jornalistas, contaminar o que disse Roxin, fazendo-o parecer comprado pelos advogados de Valdemort, por meio da contratação de um parecer ou de uma assessoria.

Tá tudo dominado.


29 de outubro de 2012

"Serrare Lombroso" e a (des)política criminal

Já é velha a notícia de que o candidato a prefeito de São Paulo José Serra lançou como proposta de política de segurança pública o acompanhamento de alunos, nas escolas, pela Fundação Casa (FEBEM), com vistas a detectar futuros criminosos e usuários de drogas.

Cesare Lombroso ficaria orgulhoso ao perceber que seu L'uomo delinquente, de 1876, em que pesem completamente desmentidas suas teses pelas ciências empíricas, ainda seduz formuladores de políticas (?) públicas de segurança. 

O candidato Serrare Lombroso, ao secundar estapafúrdia ideia, revela a ponta de um iceberg: o despreparo generalizado na formulação de uma política criminal, em todos os níveis.

Quando muito, a União e os Estados têm uma política penitenciária: a construção de mais vagas para dar conta da sempre crescente quantidade de condenados à pena privativa de liberdade. A política, porém, tende a ser paupérrima e a centrar-se na construção de prédios que, posteriormente, não são mantidos ou reformados. Ainda mais grave: as unidades não são pensadas à luz das atividades de “ressocialização”, havendo precaríssimas condições para ensino e atividades profissionalizantes. Isso para não mencionar o descalabro na assistência à saúde, na alimentação e as condições de higiene.

E política criminal, quando há, é precipuamente política penal. Exemplo gritante disso é o Projeto de Código Penal Sarney-Dipp que aumenta o requisito de progressão de regime para crimes violentos e hediondos, impactando os dois grupos mais importantes de presos: os por roubo e por tráfico de drogas. Perguntar não ofende: o que fazer com o boom prisional que se vivenciará? Hoje o déficit de vagas já é de 230.000...

Pouco ou nada se discute, com seriedade, no âmbito da prevenção dos delitos. O motivo principal é que isso não dá voto, dizem. Em segundo lugar pelo conservadorismo reinante nesse assunto, em que direita e esquerda quase não se distinguem (o episódio Serrare Lombroso, claro, é ponto fora da curva).

Muito embora os paradigmas etiológicos tenham sido abandonados por quase todos, disso não decorre que não se possam prevenir condutas indesejadas. Não instalando pre-cogs nas escolas (públicas, ficou implícito...), porém compreendendo sua gênese, seus vetores e fatores, dentro da dinâmica social.

Zonas da cidade cujos espaços de socialização se limitam a botecos de esquina + ausência de espaços de mediação de conflitos + acesso fácil a armas de fogo = homicídios violentos entre pessoas que se conhecem. Esse tem sido um diagnóstico importante dos homicídios nas zonas de periferia de grandes cidades. O que mudará com a maior permanência do homicida no sistema penitenciário? Nada. Uma política criminal verdadeira buscaria fomentar espaços coletivos de socialização, programas de composição de conflitos e de controle (ou banimento) de armas de fogo.

O descaso com o assunto alimenta o problema em círculo vicioso: novas vozes não surgem, dando espaço para que alguns desavisados, acostumados com “soluções” estapafúrdias, ao ouvir a proposta de Serrare Lombroso, pense consigo “até que não é má ideia...”.

19 de outubro de 2012

E agora? Empatou.

O empate em 5 a 5 no julgamento da Ação Penal n. 470 inaugura um debate interessante: como solucionar um empate em ação penal originária?

O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal prevê 3 regras para desempate: 1) em habeas corpus, prevalecerá a decisão favorável do paciente; 2) em recursos extraordinários, prevalece a posição que confirmava a decisão recorrida; 3) em casos de impedimento ou suspeição de ministro, vaga ou licença médica superior a 30 dias, desde que urgente a matéria e não se possa convocar Ministro licenciado, o Presidente proferirá voto de qualidade, isto é, a posição compartilhada pelo Presidente prevalecerá.

Todas têm em comum a ideia de que o empate significa manutenção das coisas como estavam: o paciente liberto e o acórdão, nos recursos, tal como proferido. Apenas quando não há status quo ante vale-se do voto de qualidade.

Nenhuma delas, porém, se aplica à referida Ação Penal. As hipóteses 1 e 2, por motivos evidentes. A 3, por absoluta falta de urgência Aliás, de todos os ritos processuais penais, o menos urgente deles é o da ação penal originária.

Uma alternativa é aguardar a posse do novo Ministro. Há previsão regimental para tanto: o art. 134 afirma que se for necessário o voto de Ministro que não tenha assistido ao relatório ou aos debates, a exemplo do desempate de votação, serão renovados o relatório e a sustentação oral, computando-se os votos anteriormente proferidos.

A única outra saída é interpretar o empate pró réu. O fundamento jurídico é muito simples: a presunção constitucional de inocência só pode ceder a uma maioria formada. O empate indica a manutenção das coisas como estão: a inocência dos acusados. Esse, como dito, o fundamento geral das demais regras de desempate.

Por fim, cumpre apontar como outros órgãos judiciais solucionariam um empate: na Corte Especial do STJ, o Presidente só vota se houver empate, proferindo voto de minerva (nesse caso, o cenário teria sido 5 a 4); a mesma solução se dá no TRF1, TRF2, TJ de SP etc.

PS: Li na internet que o Procurador Geral da República teria sustentada a "tese" de que, em empate, a prevalência do interesse público a interesses individuais, o primeiro deveria prevalecer. O chiste não encontra eco em nenhuma norma, nem tem amparo teórico. Não merece sequer ser comentado.





15 de outubro de 2012

Em nome de quê?


Diz a Constituição que todo poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido. É esse mandamento primeiro que informa os direitos individuais e coletivos nela contidos.

Disso não decorre nem um sistema plebiscitário, tampouco puramente majoritário.  Não é plebiscitário porque os agentes políticos exercem mandatos, isto é, podem executar as atividades estatais em nome do povo, sem ter que consultá-lo a todo tempo. Não é puramente majoritário porque um sistema sem respeito às minorias se degenera em ditadura da maioria. Entra-se, por exemplo, no campo das cláusulas pétreas, garantias constitucionais imutáveis, precisamente porque fundamentais ao nosso Estado Democrático de Direito.

O Judiciário também exerce o poder em nome do povo. Seu mandato não é eletivo, porém decorre da Constituição: a ele incumbe aplicar a Lei, nos seus estreitos limites, e sempre fundamentando qualquer decisão. A fundamentação, tenho para mim, é a mais importante garantia constitucional, pois é no exercício desse dever que a decisão alcança o nível de judicial, separando-se da opinião, do achismo e do capricho.

O exercício do poder em nome do povo encontrou diversos matizes no julgamento da Ação Penal n. 470. Houve uma dimensão populista (para agradar o povo, confundido com a opinião publicada); uma dimensão moralista ou eticizante (para educar o povo); uma dimensão autoritária (apropriação pelo pessoa do poder investido no seu cargo); e uma dimensão propriamente jurídica (em nome do poder que o povo lhe conferiu de aplicar a Lei).

Tenho que apenas a última merece o status de republicana.

Afirmações do jaez de “meu conhecimento de juiz é suficiente para aferir a verdade de uma acusação, independente das provas” é exemplo claro de autoritarismo. Coloca-se ao largo, senão acima da Lei, como preclaro conhecedor onisciente. Frustra a Lei tal como aqueles a quem condena.

Moralista ou eticizante são as fundamentações que dão maior valor ao papel educativo do julgamento do que à força das provas, muito recorrentes do voto do Ministro Ayres Britto.

O populismo se faz sentir na troça ao direito de defesa, incutindo nos expectadores desse julgamento-espetáculo uma espúria aproximação simbólica entre o réu e seu advogado, em processo alquímico de transformação de defesa em co-autoria.

Excepcionalmente, aplica-se a Lei.

O resultado é per se nefasto. O que dizer de um Poder capitaneado por um grupo de magistrados que, em nome de uma perversa noção de accountability, trocou a Lei pelo Status, pela Moral ou pelo Voluntarismo?

Se isso não bastasse, dois ditados populares me socorrem na ilustração dos efeitos: “pau que bate em Chico, bate em Francisco” e “onde passa boi, passa boiada”.

Choverão decisões “fundamentadas” na AP 470 em que (i) elementos do tipo poderão ser excluídos em nome da moralidade (a exemplo do ato de ofício para o delito de corrupção); (ii) o ônus da prova da inocência será transferido ao réu; (iii) a mera condição de juiz substituirá a necessidade de provas; (iv) qualquer destino dado a recursos ilícitos será considerado lavagem, em verdadeiro delito dois-em-um; (vi) qualquer um em posição hierárquica superior responderá pela "doutrina brasileira" da teoria do domínio do fato; (vii) as alegações defensivas serão consideradas “abobrinhas”.

Em nome de quê?

8 de outubro de 2012

Joaquim Barbosa, Geni e o Zepelim




Todos conhecem a história de Geni, personagem de Chico Buarque que, sexualmente ativa e pouco seletiva em relação a seus parceiros, era enxovalhada pelos moradores da cidade. Um belo dia, ali aporta um temível malfeitor, conduzido por um zepelim prateado, decidido a eliminar o povoado. Ao conhecer Geni desiste do plano, caso ela com ele se deitasse. Nesse momento, Geni passa de devassa a santa: “vai com ele, vai Geni, você pode nos salvar, você vai nos redimir”, clamavam seus concidadãos. Passada a noite de amor, Geni, exausta, não consegue dormir, pois os moradores da cidade, tão logo parte o zepelim, tornam a publicamente perturbar a moça.

Aproximando-se o fim do julgamento da Ação Penal n. 470 Joaquim Barbosa ocupa o papel da santa Geni. É ele quem vai nos salvar, nos redimir. Reproduzido nas redes sociais como um Batman da justiça, Sua Excelência vai sendo construído como um presidenciável. Talvez Freud explique, mas na chefia do Judiciário já afirmou que vai querer participar ativamente da indicação dos próximos Ministros do Supremo, em clara oposição ao texto daquela coisinha sem importância chamada constituição (com minúscula mesmo, por força das circunstâncias).

Mas o zepelim está por partir. Um dia a cantilena acaba e o julgamento chega ao fim. Com as eleições municipais consolidadas, os holofotes já não estarão tão interessados. Não demorará a chegar o dia em que Joaquim Barbosa, juiz correto que é, defenda interesse colidente ao da opinião publicada (sobretudo depois de confessar ter votado em Lula e em Dilma). Nesse dia, não poderá dormir, pois considerando como se conduzem as coisas públicas no Brasil, instantaneamente será alvo de execração pública, tal como no episódio em que teria sido flagrado em um bar em Brasília alegadamente durante uma licença médica.

Foi assim com Lewandowski. Não nos esqueçamos que até ontem ele era o herói do Ficha Limpa. Ele ia nos salvar; ele ia nos redimir. Hoje, por divergir do Batman, é retratado como o Coringa.

E assim caminha a construção dos debates nacionais: a partir de maniqueísmos, heróis e devassas. Não necessariamente nessa mesma ordem. E, sob a poeira do zepelim, permanecemos sem uma reforma eleitoral, sem repensar o financiamento de campanhas, acríticos quanto à vocação de uma corte suprema e o sentido do foro privilegiado.  Entorpecidos, porém, pelas sisudas capas magistrais.