15 de outubro de 2012

Em nome de quê?


Diz a Constituição que todo poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido. É esse mandamento primeiro que informa os direitos individuais e coletivos nela contidos.

Disso não decorre nem um sistema plebiscitário, tampouco puramente majoritário.  Não é plebiscitário porque os agentes políticos exercem mandatos, isto é, podem executar as atividades estatais em nome do povo, sem ter que consultá-lo a todo tempo. Não é puramente majoritário porque um sistema sem respeito às minorias se degenera em ditadura da maioria. Entra-se, por exemplo, no campo das cláusulas pétreas, garantias constitucionais imutáveis, precisamente porque fundamentais ao nosso Estado Democrático de Direito.

O Judiciário também exerce o poder em nome do povo. Seu mandato não é eletivo, porém decorre da Constituição: a ele incumbe aplicar a Lei, nos seus estreitos limites, e sempre fundamentando qualquer decisão. A fundamentação, tenho para mim, é a mais importante garantia constitucional, pois é no exercício desse dever que a decisão alcança o nível de judicial, separando-se da opinião, do achismo e do capricho.

O exercício do poder em nome do povo encontrou diversos matizes no julgamento da Ação Penal n. 470. Houve uma dimensão populista (para agradar o povo, confundido com a opinião publicada); uma dimensão moralista ou eticizante (para educar o povo); uma dimensão autoritária (apropriação pelo pessoa do poder investido no seu cargo); e uma dimensão propriamente jurídica (em nome do poder que o povo lhe conferiu de aplicar a Lei).

Tenho que apenas a última merece o status de republicana.

Afirmações do jaez de “meu conhecimento de juiz é suficiente para aferir a verdade de uma acusação, independente das provas” é exemplo claro de autoritarismo. Coloca-se ao largo, senão acima da Lei, como preclaro conhecedor onisciente. Frustra a Lei tal como aqueles a quem condena.

Moralista ou eticizante são as fundamentações que dão maior valor ao papel educativo do julgamento do que à força das provas, muito recorrentes do voto do Ministro Ayres Britto.

O populismo se faz sentir na troça ao direito de defesa, incutindo nos expectadores desse julgamento-espetáculo uma espúria aproximação simbólica entre o réu e seu advogado, em processo alquímico de transformação de defesa em co-autoria.

Excepcionalmente, aplica-se a Lei.

O resultado é per se nefasto. O que dizer de um Poder capitaneado por um grupo de magistrados que, em nome de uma perversa noção de accountability, trocou a Lei pelo Status, pela Moral ou pelo Voluntarismo?

Se isso não bastasse, dois ditados populares me socorrem na ilustração dos efeitos: “pau que bate em Chico, bate em Francisco” e “onde passa boi, passa boiada”.

Choverão decisões “fundamentadas” na AP 470 em que (i) elementos do tipo poderão ser excluídos em nome da moralidade (a exemplo do ato de ofício para o delito de corrupção); (ii) o ônus da prova da inocência será transferido ao réu; (iii) a mera condição de juiz substituirá a necessidade de provas; (iv) qualquer destino dado a recursos ilícitos será considerado lavagem, em verdadeiro delito dois-em-um; (vi) qualquer um em posição hierárquica superior responderá pela "doutrina brasileira" da teoria do domínio do fato; (vii) as alegações defensivas serão consideradas “abobrinhas”.

Em nome de quê?

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