30 de setembro de 2013

Feminicídio e Direito Penal: a propósito da Lei Maria da Penha

A Lei Maria da Penha criou "mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar" e homenageia Maria da Penha Maia Fernandes, biofarmacêutica cearense cujo caso chegou à Corte Interamericana de Direitos Humanos apontando inépcia estatal em punir (adequadamente) seu então companheiro por tentar matá-la (duas vezes). 

Recente estudo do IPEA revela que a referida Lei não teve impacto no feminicídio. que oscilou entre 5,41/100.00 habitantes, em 2001, e 5,43/100.000, em 2011, cinco anos após a edição da Lei.

A conclusão não espanta em nada. 

Se o Direito penal já tem baixíssima capacidade de prevenir que determinadas condutas aconteçam, isso se torna especialmente verdadeiro no ambiente doméstico. A fina trama de relações de poder e de dominação no ambiente doméstico está muito distante do controle social formal, de modo que possívies (nunca demonstradas) funções preventivas da pena são incipientes diante da certeza fálica de dominação do feminino. Basta ver que 29% dos casos ocorre dentro de casa e 25% em hospitais (de modo que a violência ocorreu em outro lugar e apenas o óbito registrou-se no hospital...). 

Alguns dados são muito interessantes:

1. Há uma grande oscilação entre os índices, por Unidades da Federação: de 11,24/100.000 no Espírito Santo a 2,71, no Piauí. A par de diferenças no registro de dados, a diferença sugere que pode haver dinâmicas diferentes nos diversos Estados que apontem para a maior incidência desse fenômeno;

2. 61% dos óbitos foram de mulheres negras, sendo que no Nordeste esse número chega a 87% e no Norte, 83%. Haveria um componente racial subjacente à violência?;

3. 50% dos feminicídios envolvem armas de fogo. A prevenção não passa pelo incremento das políticas de desarmamento (com mais eficiência do que por meio do aumento de penas)?

Curiosamente, o relatório inclina-se à criação da forma qualificada de homicídio denominada feminicídio. Na prática, a qualificadora só serviria de fato para os casos de feminicídio simples, ou seja, de feminicídio que não fossem qualificados por uso de meios insidiosos, crueis, ou de que resultassem perigo comum, por motivos torpe ou fútil, mediante emboscada ou outros meios de dificultassem ou impedissem a defesa da mulher etc. 

É curioso, pois não se sabe quantos dos casos já não são de homicídio qualificado contra a mulher. a apontar certo simbolismo na proposta.

É, também, curioso, pois a dinâmica da violência doméstica sugere que a pena poderia ser de 1000 anos. Tomado de violenta emoção e crente que a mulher lhe pertence ou lhe deve subserviência, o agressor se lançará contra a vítima não importa a sanção que possa sobrevir. Notem que 31% dos casos ocorreu em vias públicas, ou seja, a exposição ao perigo de ser preso não deteve o agressor...

Para ser fiel às conclusões, o relatório também sugere reforço das demais políticas não penais contidas na Lei Maria da Penha.

Deveria ter parado aí.

25 de setembro de 2013

Embargos infringentes na Ação Penal 470


Mais uma vez, o julgamento do mensalão voltou a ser a principal pauta nas discussões nacionais. Dessa vez, com um novo objeto ainda mais específico: o cabimento dos embargos infringentes no STF nos casos de ação penal originária.
Aproveito para fazer uma breve contextualização: os embargos infringentes tem seu cabimento comum previsto no art. 609, do CPP, o qual admite a sua interposição contra decisões de segunda instância não for unânimes e desfavoráveis ao réu. Nesses casos, cabe às instâncias superiores, STF ou STJ, julgar novamente apenas os pontos controvertidos entre os julgadores da instância inferior. Sobre isso, doutrina e jurisprudência já pacificaram seu entendimento.
A questão mais polêmica do atual debate é a admissão do mencionado recurso no STF para ações penais originárias. Por um lado, o artigo 333, inciso I, do Regimento Interno da Corte, de 1969, recepciona os embargos infringentes contra decisões não unânimes que julgue procedente ação penal, por outro a Lei 8038/90 que disciplina sobre os recursos cabíveis para o STJ e STF e sobre o procedimento das ações penais originárias nesses órgãos não prevê o recurso em questão.
Aqueles contrários a admissão dos embargos sustentam, grosso modo, que a Lei 8038/90, ao não mencioná-los, revoga-os tacitamente, tendo em vista que é posterior ao regimento interno da Corte, editado em 1969. Além disso, defende-se também que, com a aceitação dos embargos, prolongaria-se ainda mais o julgamento no tempo, o que poderia levar à prescrição de alguns crimes ou à absolvição de alguns réu, criando assim um clima de impunidade, o que choca a opinião pública brasileira.
Diante desse argumentos, muitas vezes acentuados de forma irresponsável e irreal pela mídia, algumas coisas devem ser ponderadas: o nosso processo penal deve caminhar conduzido pelas garantias constitucionais que legitimam o exercício da jurisdição pelo judiciário. Garantias como o contraditório, a ampla defesa, o duplo grau de jurisdição devem ser sempre observadas ao julgar a responsabilidade penal de um indivíduo. Isso não pode ser posto de lado para alcançar o resultado que se deseja ou para agradar os anseios da sociedade brasileira e muito menos para alcançar a punição dos réus a qualquer custo.
Os embargos infringentes permitem que uma nova análise de alguns pontos seja feita, possibilitanto que possíveis injustiças ou erros sejam corrigidos, evitando também que penas desproporcionais sejam aplicadas. No caso da ação penal 470, 4 ministros votaram em conformidade com o alegado pela defesa, deixando claro que a questão não é de fácil auferição e muito menos que há consenso sobre a materialidade de alguns crimes e sobre a suficiência de algumas provas para levarem os réus à condenação. Como a liberdade, um dos direitos mais relevantes, está em jogo, não existe prejuízo em expor o caso a mais uma análise.
É importante ressaltar que, ao contrário do que vem sido dito, os embargos infringentes não levarão à impunidade, decorrente de possíveis absolvições ou prescrições. Com a publicação do acórdão condenatório, no final de 2012, a prescrição foi interrompida e começou a contar novamente. A contagem não é a mesma que se iniciou com o recebimento da denúncia, portanto as chances de prescrição são realmente muito pequenas. Em relação à absolvição, 11 dos 12 réus já estão condenados pela ação penal 470, independente do resultado do julgamento dos embargos. Isso porque esse recurso apenas analisa as questões que possuíram divergência de 4 votos ou mais. No caso do ex-ministro José Dirceu, por exemplo, o máximo de redução que sua pena pode ter é de 10 anos e 10 meses para 7 anos e 11 meses, pois apenas houve a divergência necessária no crime de formação de quadrilha. Essa alteração muda o regime inicial de cumprimento de pena? Sim, mas voltamos a ressaltar que o julgamento em debate não deve buscar a condenação rigorosa dos réus, e sim a devida aplicação das normas penais, em observância às garantias constitucionais inerentes a um Estado Democrático de Direito. Os direitos individuais não podem ser seifados para agradar o clamor popular ou para alcançar uma punição exemplar. Utilizo-me das claras palavras do Ministro Luís Roberto Barroso: “Ninguém deseja o prolongamento desta ação. (...) Mas é para isso que existe a Constituição: para que o direito de 11 não seja atropelado pelo interesse de milhões."
(post escrito com a colaboração de José Paulo Naves)