17 de outubro de 2013

Ainda sobre a PEC das Polícias (51/2013): o controle externo

O último post a propósito da desmilitarização das polícias gerou comentários intensos, de lado a lado do debate. Prova de que a questão é polêmica e que merecer ser publicamente debatida.

Uma das lições mais singelas de ciência política é a de que o poder corrompe. É da natureza do detentor do poder ver-se tentado a usá-lo consoante seus interesses privados. E faço um parêntese: privado não é sinônimo de corrupto (assim entendido conforme o Direito Penal). Um promotor de justiça que tenha perdido um ente querido em um assalto tenderá a exercer seu munus de maneira não-neutra ao atuar em casos de latrocínio; um servidor da justiça eleitoral poderá ser mais célere com pleitos que interessem ao campo ideológico a que se filie; um funcionário do Tribunal de Contas com fortes convicções religiosas poderá implicar com projetos públicos direcionados a grupos LGBT. Tudo isso em receber um único tostão de quem quer que seja. Mas são todos exemplos latos de corrupção no sentido de atos públicos maculados, contaminados, viciados por interesses privados, pessoais, não-republicanos.

Sendo ínsito ao ser humano deixar-se corromper pelo poder, a única estratégia com vistas a preservar a integridade dos atos públicos é promover-lhe controle externo. Exigir que os atos sejam adequadamente motivados; que existam procedimentos a que todos os atos se submetam; que haja sanções administrativas àqueles que abusem da condição que ostentam.

Esse é o ponto do controle externos das Polícias: as Corregedorias (em que pese a atuação competente de muitas delas) quando compostas por agentes da própria corporação será sempre internamente pressionada a servir a interesses corporativos. De mais a mais, os Corregedores respondem ao Delegado-Geral e, com isso, têm, por definição, atuação limitada pelo jogo interno de poder. 

A PEC 51/2013 prevê que as Ouvidorias externas terão autonomia orçamentária e funcional (sob pena de não haver a necessária independência). Quais seriam suas atribuições constitucionais:
a) requisitar esclarecimentos do órgão policial e dos demais órgãos de segurança pública;
b) avaliar a atuação do órgão policial, propondo providências administrativas ou medidas necessárias ao aperfeiçoamento de suas atividades;
c) zelar pela integração e compartilhamento das informações entre os órgãos de segurança pública e pela ênfase no caráter preventivo da atividade policial;
d) suspender a prática, pelo órgão policial, de procedimentos comprovadamente incompatíveis com uma atuação humanizada e democrática dos órgãos policiais;
e) receber e conhecer das reclamações contra profissionais integrantes de órgão policial, sem prejuízo da competência disciplinar e correcional das instâncias internas, podendo aplicar sanções administrativas, inclusive a remoção, a disponibilidade ou a demissão do cargo, assegurada a ampla defesa;
f) representar ao MP, no caso de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade; e
g) elaborar anualmente relatório sobre a situação da segurança pública em sua região, a atuação de órgão policial de sua competência e dos demais órgãos de segurança pública, bem como sobre as atividades que desenvolver, incluindo as denúncias recebidas e as decisões proferidas.

Controle externo e independente das atividades públicas. Essa é a chave para a democratização do Estado: a criação de um ambiente público e arejado de responsabilização externa de abusos.

1 de outubro de 2013

Desmilitarização da polícia: primeiras impressões da PEC 51/2013

Quando se clamava pela rejeição da PEC 37, sempre sustentei que a questão não era ser pró ou contra os poderes investigatórios do MP. A questão premente era (e é): o inquérito polical, tal como está, é com convite para a corrupção policial, para a ineficiência da máquina, para a pobreza na produção de "provas"etc.

Pois bem. Um dos elementos da crise da investigação policial é a insólita dicotomia polícia civil versus militar. Ao contrário da jabuticaba, não chega a ser orgulho nacional essa ave rara brasileira.

Recebi, portanto, como boa notícia a PEC 51/2013, proposta pelo Senador Lindbergh Farias, do PT do Rio de Janeiro, que trata da desmilitarização da polícia.

A inserção do art. 143-A à Constituição Federal estabelece princípios reitores da segurança pública. Não estou certo se uma lista de princípios terá força cogente, em especial porque orientará a elaboração de políticas públicas de segurança, cuja supervisão judicial é bastante remota. De qualquer forma, passa recados importantes: a prevalência da estratégias de prevenção, a valorização dos funcionários de segurança, a ênfase aos mecanismos de controle social e de promoção de transparência e, por fim, a determinação de fiscalização efetiva de abusos e ilícitos cometidos por profissionais da segurança pública. 

É o parágrafo único do novo art. 143-A que, em síntese, unifica a polícia, de natureza civil, "cuja função é garantir os direitos dos cidadãos, e que poderão recorrer ao uso comedido da força, segundo a proporcionalidade e razoabilidade, devendo atuar ostensiva e preventivamente, investigando e realizando a persecução criminal".

A unicidade, para além de expurgar o componente militar do trato do cidadão na pólis, confere racionalidade ao sistema: em nenhum paradigma defensável o comando da prevenção está em um órgão e o da repressão, em outro. Essa cisão só é admissível argumentativamente; na prática, as ações devem ser necessariamente articuladas.

Supondo que a polícia civil de fato consiga, no modelo atual, montar esquemas de investigação com vistas à prevenção (e não, quando muito, de meros fatos pretéritos), como funcionaria o vaso comunicante com a polícia militar? O Delegado compartilharia ao Comandante do Batalhão onde tais ou quais crimes incidiram? Ainda que isso fosse politicamente possível, não revelaria, por si só, que o eficiente seria uma única autoridade que articulasse as ações?

Com isso não se minimize a excrescência de uma polícia militar. A permanência dessa contradictio in adjecto só se explica pelo baixo compromisso que temos, como sociedade, com a liberdade. Quem ler o saboroso Rota 66 de Caco Barcelos verá como a Polícia Militar de São Paulo, esvaziada do inimigo combatido pela ditadura, centrou suas baterias nos jovens da periferia, dando corpo aos nefastos esquadrões da morte. 

Mas como não éramos jovens da periferia, não protestamos. Compramos o discurso de que a PM "só matava bandidos", afinal apenas os direitos humanos mereceriam respeito. Como não éramos nem bandidos, e sim "humanos direitos", não protestamos.

Brecht à parte, as manifestações de junho mostraram que a dicotomia mocinho e bandido não se aplica a uma atuação calculadamente violenta. Estando na rua e colocando-se contra o establishment, sobretudo se houver risco ao patrimônio, tome porrada! Amarildos e protestos depois, somos forçados a reconhecer que a cidadania que nos une a todos demanda um tratamento civil. Ponto.

Num próximo post, controle externo.