18 de novembro de 2013

A súmula 500 do STJ

Súmula 500: a configuração do crime previsto no artigo 244-B do Estatuto da Criança e do Adolescente independe da prova da efetiva corrupção do menor, por se tratar de delito formal.


Como diria Platão, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Delito formal é aquele cujo desvalor jaz na própria realização da ação proibida, sendo irrelevante ao tipo (ao menos em suas formas simples) a produção de um resultado. Oferecer propina a funcionário público é, por si só, suficientemente reprovado pelo ordenamento, não dependendo o delito de corrupção que o funcionário efetivamente aceite a propina.

Pois bem, e que diz o art. 244-B do ECA? Ele contém dois verbos: corromper e facilitar. Corromper é alterar algo para pior, estragar alguma coisa; já facilitar é tornar fácil, no caso, a corrupção, ou seja, facilitar que algo se altere para pior, que se estrague. De todas as formas de corromper o menor de 18 anos, incriminam-se duas: com ele praticando infração penal ou induzindo-o a praticá-la.

Como se vê, o verbo corromper pede, semanticamente, que haja uma alteração de estado daquilo que foi corrompido. É, assim, delito material. Seria possível incriminar o uso de menores de 18 anos para a prática de delitos? Sim. Bastaria empregar outro verbo ou outra estrutura típica.

Essa interpretação fica reforçada com a agravante do artigo 62 do Código Penal: aumenta-se a pena daquele que "instiga ou determina a cometer o crime alguém sujeito à sua autoridade ou não-punível em virtude de sua condição ou qualidade pessoal".

Parece que o Código Penal reservou ao mero uso de menores de 18 anos na prática de delitos situação a ensejar o incremento de pena; e, quando desse uso sobrevier uma corrupção daquele menor de 18 anos, isto é, uma deterioração de suas condições pessoais pela prática do delito, então incidirá a apontada figura típica.

Assim não fosse, aquele que se valesse de um menor já em plena carreira criminal seria punido sem que houvesse nenhuma lesão ou exposição de perigo a bem jurídico. O desvalor de empregar alguém nessa situação, insisto, pode ser aferido por ocasião da segunda fase da dosimetria da pena, precisamente por meio da agravante já mencionada.

17 de outubro de 2013

Ainda sobre a PEC das Polícias (51/2013): o controle externo

O último post a propósito da desmilitarização das polícias gerou comentários intensos, de lado a lado do debate. Prova de que a questão é polêmica e que merecer ser publicamente debatida.

Uma das lições mais singelas de ciência política é a de que o poder corrompe. É da natureza do detentor do poder ver-se tentado a usá-lo consoante seus interesses privados. E faço um parêntese: privado não é sinônimo de corrupto (assim entendido conforme o Direito Penal). Um promotor de justiça que tenha perdido um ente querido em um assalto tenderá a exercer seu munus de maneira não-neutra ao atuar em casos de latrocínio; um servidor da justiça eleitoral poderá ser mais célere com pleitos que interessem ao campo ideológico a que se filie; um funcionário do Tribunal de Contas com fortes convicções religiosas poderá implicar com projetos públicos direcionados a grupos LGBT. Tudo isso em receber um único tostão de quem quer que seja. Mas são todos exemplos latos de corrupção no sentido de atos públicos maculados, contaminados, viciados por interesses privados, pessoais, não-republicanos.

Sendo ínsito ao ser humano deixar-se corromper pelo poder, a única estratégia com vistas a preservar a integridade dos atos públicos é promover-lhe controle externo. Exigir que os atos sejam adequadamente motivados; que existam procedimentos a que todos os atos se submetam; que haja sanções administrativas àqueles que abusem da condição que ostentam.

Esse é o ponto do controle externos das Polícias: as Corregedorias (em que pese a atuação competente de muitas delas) quando compostas por agentes da própria corporação será sempre internamente pressionada a servir a interesses corporativos. De mais a mais, os Corregedores respondem ao Delegado-Geral e, com isso, têm, por definição, atuação limitada pelo jogo interno de poder. 

A PEC 51/2013 prevê que as Ouvidorias externas terão autonomia orçamentária e funcional (sob pena de não haver a necessária independência). Quais seriam suas atribuições constitucionais:
a) requisitar esclarecimentos do órgão policial e dos demais órgãos de segurança pública;
b) avaliar a atuação do órgão policial, propondo providências administrativas ou medidas necessárias ao aperfeiçoamento de suas atividades;
c) zelar pela integração e compartilhamento das informações entre os órgãos de segurança pública e pela ênfase no caráter preventivo da atividade policial;
d) suspender a prática, pelo órgão policial, de procedimentos comprovadamente incompatíveis com uma atuação humanizada e democrática dos órgãos policiais;
e) receber e conhecer das reclamações contra profissionais integrantes de órgão policial, sem prejuízo da competência disciplinar e correcional das instâncias internas, podendo aplicar sanções administrativas, inclusive a remoção, a disponibilidade ou a demissão do cargo, assegurada a ampla defesa;
f) representar ao MP, no caso de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade; e
g) elaborar anualmente relatório sobre a situação da segurança pública em sua região, a atuação de órgão policial de sua competência e dos demais órgãos de segurança pública, bem como sobre as atividades que desenvolver, incluindo as denúncias recebidas e as decisões proferidas.

Controle externo e independente das atividades públicas. Essa é a chave para a democratização do Estado: a criação de um ambiente público e arejado de responsabilização externa de abusos.

1 de outubro de 2013

Desmilitarização da polícia: primeiras impressões da PEC 51/2013

Quando se clamava pela rejeição da PEC 37, sempre sustentei que a questão não era ser pró ou contra os poderes investigatórios do MP. A questão premente era (e é): o inquérito polical, tal como está, é com convite para a corrupção policial, para a ineficiência da máquina, para a pobreza na produção de "provas"etc.

Pois bem. Um dos elementos da crise da investigação policial é a insólita dicotomia polícia civil versus militar. Ao contrário da jabuticaba, não chega a ser orgulho nacional essa ave rara brasileira.

Recebi, portanto, como boa notícia a PEC 51/2013, proposta pelo Senador Lindbergh Farias, do PT do Rio de Janeiro, que trata da desmilitarização da polícia.

A inserção do art. 143-A à Constituição Federal estabelece princípios reitores da segurança pública. Não estou certo se uma lista de princípios terá força cogente, em especial porque orientará a elaboração de políticas públicas de segurança, cuja supervisão judicial é bastante remota. De qualquer forma, passa recados importantes: a prevalência da estratégias de prevenção, a valorização dos funcionários de segurança, a ênfase aos mecanismos de controle social e de promoção de transparência e, por fim, a determinação de fiscalização efetiva de abusos e ilícitos cometidos por profissionais da segurança pública. 

É o parágrafo único do novo art. 143-A que, em síntese, unifica a polícia, de natureza civil, "cuja função é garantir os direitos dos cidadãos, e que poderão recorrer ao uso comedido da força, segundo a proporcionalidade e razoabilidade, devendo atuar ostensiva e preventivamente, investigando e realizando a persecução criminal".

A unicidade, para além de expurgar o componente militar do trato do cidadão na pólis, confere racionalidade ao sistema: em nenhum paradigma defensável o comando da prevenção está em um órgão e o da repressão, em outro. Essa cisão só é admissível argumentativamente; na prática, as ações devem ser necessariamente articuladas.

Supondo que a polícia civil de fato consiga, no modelo atual, montar esquemas de investigação com vistas à prevenção (e não, quando muito, de meros fatos pretéritos), como funcionaria o vaso comunicante com a polícia militar? O Delegado compartilharia ao Comandante do Batalhão onde tais ou quais crimes incidiram? Ainda que isso fosse politicamente possível, não revelaria, por si só, que o eficiente seria uma única autoridade que articulasse as ações?

Com isso não se minimize a excrescência de uma polícia militar. A permanência dessa contradictio in adjecto só se explica pelo baixo compromisso que temos, como sociedade, com a liberdade. Quem ler o saboroso Rota 66 de Caco Barcelos verá como a Polícia Militar de São Paulo, esvaziada do inimigo combatido pela ditadura, centrou suas baterias nos jovens da periferia, dando corpo aos nefastos esquadrões da morte. 

Mas como não éramos jovens da periferia, não protestamos. Compramos o discurso de que a PM "só matava bandidos", afinal apenas os direitos humanos mereceriam respeito. Como não éramos nem bandidos, e sim "humanos direitos", não protestamos.

Brecht à parte, as manifestações de junho mostraram que a dicotomia mocinho e bandido não se aplica a uma atuação calculadamente violenta. Estando na rua e colocando-se contra o establishment, sobretudo se houver risco ao patrimônio, tome porrada! Amarildos e protestos depois, somos forçados a reconhecer que a cidadania que nos une a todos demanda um tratamento civil. Ponto.

Num próximo post, controle externo.

30 de setembro de 2013

Feminicídio e Direito Penal: a propósito da Lei Maria da Penha

A Lei Maria da Penha criou "mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar" e homenageia Maria da Penha Maia Fernandes, biofarmacêutica cearense cujo caso chegou à Corte Interamericana de Direitos Humanos apontando inépcia estatal em punir (adequadamente) seu então companheiro por tentar matá-la (duas vezes). 

Recente estudo do IPEA revela que a referida Lei não teve impacto no feminicídio. que oscilou entre 5,41/100.00 habitantes, em 2001, e 5,43/100.000, em 2011, cinco anos após a edição da Lei.

A conclusão não espanta em nada. 

Se o Direito penal já tem baixíssima capacidade de prevenir que determinadas condutas aconteçam, isso se torna especialmente verdadeiro no ambiente doméstico. A fina trama de relações de poder e de dominação no ambiente doméstico está muito distante do controle social formal, de modo que possívies (nunca demonstradas) funções preventivas da pena são incipientes diante da certeza fálica de dominação do feminino. Basta ver que 29% dos casos ocorre dentro de casa e 25% em hospitais (de modo que a violência ocorreu em outro lugar e apenas o óbito registrou-se no hospital...). 

Alguns dados são muito interessantes:

1. Há uma grande oscilação entre os índices, por Unidades da Federação: de 11,24/100.000 no Espírito Santo a 2,71, no Piauí. A par de diferenças no registro de dados, a diferença sugere que pode haver dinâmicas diferentes nos diversos Estados que apontem para a maior incidência desse fenômeno;

2. 61% dos óbitos foram de mulheres negras, sendo que no Nordeste esse número chega a 87% e no Norte, 83%. Haveria um componente racial subjacente à violência?;

3. 50% dos feminicídios envolvem armas de fogo. A prevenção não passa pelo incremento das políticas de desarmamento (com mais eficiência do que por meio do aumento de penas)?

Curiosamente, o relatório inclina-se à criação da forma qualificada de homicídio denominada feminicídio. Na prática, a qualificadora só serviria de fato para os casos de feminicídio simples, ou seja, de feminicídio que não fossem qualificados por uso de meios insidiosos, crueis, ou de que resultassem perigo comum, por motivos torpe ou fútil, mediante emboscada ou outros meios de dificultassem ou impedissem a defesa da mulher etc. 

É curioso, pois não se sabe quantos dos casos já não são de homicídio qualificado contra a mulher. a apontar certo simbolismo na proposta.

É, também, curioso, pois a dinâmica da violência doméstica sugere que a pena poderia ser de 1000 anos. Tomado de violenta emoção e crente que a mulher lhe pertence ou lhe deve subserviência, o agressor se lançará contra a vítima não importa a sanção que possa sobrevir. Notem que 31% dos casos ocorreu em vias públicas, ou seja, a exposição ao perigo de ser preso não deteve o agressor...

Para ser fiel às conclusões, o relatório também sugere reforço das demais políticas não penais contidas na Lei Maria da Penha.

Deveria ter parado aí.

25 de setembro de 2013

Embargos infringentes na Ação Penal 470


Mais uma vez, o julgamento do mensalão voltou a ser a principal pauta nas discussões nacionais. Dessa vez, com um novo objeto ainda mais específico: o cabimento dos embargos infringentes no STF nos casos de ação penal originária.
Aproveito para fazer uma breve contextualização: os embargos infringentes tem seu cabimento comum previsto no art. 609, do CPP, o qual admite a sua interposição contra decisões de segunda instância não for unânimes e desfavoráveis ao réu. Nesses casos, cabe às instâncias superiores, STF ou STJ, julgar novamente apenas os pontos controvertidos entre os julgadores da instância inferior. Sobre isso, doutrina e jurisprudência já pacificaram seu entendimento.
A questão mais polêmica do atual debate é a admissão do mencionado recurso no STF para ações penais originárias. Por um lado, o artigo 333, inciso I, do Regimento Interno da Corte, de 1969, recepciona os embargos infringentes contra decisões não unânimes que julgue procedente ação penal, por outro a Lei 8038/90 que disciplina sobre os recursos cabíveis para o STJ e STF e sobre o procedimento das ações penais originárias nesses órgãos não prevê o recurso em questão.
Aqueles contrários a admissão dos embargos sustentam, grosso modo, que a Lei 8038/90, ao não mencioná-los, revoga-os tacitamente, tendo em vista que é posterior ao regimento interno da Corte, editado em 1969. Além disso, defende-se também que, com a aceitação dos embargos, prolongaria-se ainda mais o julgamento no tempo, o que poderia levar à prescrição de alguns crimes ou à absolvição de alguns réu, criando assim um clima de impunidade, o que choca a opinião pública brasileira.
Diante desse argumentos, muitas vezes acentuados de forma irresponsável e irreal pela mídia, algumas coisas devem ser ponderadas: o nosso processo penal deve caminhar conduzido pelas garantias constitucionais que legitimam o exercício da jurisdição pelo judiciário. Garantias como o contraditório, a ampla defesa, o duplo grau de jurisdição devem ser sempre observadas ao julgar a responsabilidade penal de um indivíduo. Isso não pode ser posto de lado para alcançar o resultado que se deseja ou para agradar os anseios da sociedade brasileira e muito menos para alcançar a punição dos réus a qualquer custo.
Os embargos infringentes permitem que uma nova análise de alguns pontos seja feita, possibilitanto que possíveis injustiças ou erros sejam corrigidos, evitando também que penas desproporcionais sejam aplicadas. No caso da ação penal 470, 4 ministros votaram em conformidade com o alegado pela defesa, deixando claro que a questão não é de fácil auferição e muito menos que há consenso sobre a materialidade de alguns crimes e sobre a suficiência de algumas provas para levarem os réus à condenação. Como a liberdade, um dos direitos mais relevantes, está em jogo, não existe prejuízo em expor o caso a mais uma análise.
É importante ressaltar que, ao contrário do que vem sido dito, os embargos infringentes não levarão à impunidade, decorrente de possíveis absolvições ou prescrições. Com a publicação do acórdão condenatório, no final de 2012, a prescrição foi interrompida e começou a contar novamente. A contagem não é a mesma que se iniciou com o recebimento da denúncia, portanto as chances de prescrição são realmente muito pequenas. Em relação à absolvição, 11 dos 12 réus já estão condenados pela ação penal 470, independente do resultado do julgamento dos embargos. Isso porque esse recurso apenas analisa as questões que possuíram divergência de 4 votos ou mais. No caso do ex-ministro José Dirceu, por exemplo, o máximo de redução que sua pena pode ter é de 10 anos e 10 meses para 7 anos e 11 meses, pois apenas houve a divergência necessária no crime de formação de quadrilha. Essa alteração muda o regime inicial de cumprimento de pena? Sim, mas voltamos a ressaltar que o julgamento em debate não deve buscar a condenação rigorosa dos réus, e sim a devida aplicação das normas penais, em observância às garantias constitucionais inerentes a um Estado Democrático de Direito. Os direitos individuais não podem ser seifados para agradar o clamor popular ou para alcançar uma punição exemplar. Utilizo-me das claras palavras do Ministro Luís Roberto Barroso: “Ninguém deseja o prolongamento desta ação. (...) Mas é para isso que existe a Constituição: para que o direito de 11 não seja atropelado pelo interesse de milhões."
(post escrito com a colaboração de José Paulo Naves) 



20 de dezembro de 2012

A prisão dos réus do Mensalão no recesso: pode Arnaldo?

O Procurador-Geral da República apresenta no primeiro dia do recesso pedido de prisão dos réus da Ação Penal 470.

Por mais que eu me esforce, não encontro fundamento jurídico a fundamentar eventual (quase certa) decisão que as determine.

Só conheço duas modalidades de prisão no Brasil: aquela que decorre de sentença judicial transitada em julgado ou as diversas modalidades de prisão cautelar.

A primeira hipótese não se aplica ao caso: nem houve trânsito em julgado, tampouco determinação de prisão pelos juízes de conhecimento (o Pleno do STF).

A segunda hipótese também não: dificilmente o PGR terá fundamento para determinar a prisão de três dezenas de réus, com a individualização que o próprio STF vem exigindo para esse tipo de prisão.

Pior: por mais que eu me esforce, não encontro norma que autorize o julgamento monocrático por Joaquim Barbosa.

Em se tratando de prisão decorrente de condenação, findo o julgamento e não havendo decisão acerca da prisão, esse tema só pode ser novamente apreciado em sede de recurso. Como o interesse é do PGR, os embargos declaratórios por omissão seriam o caminho juridicamente correto.

O Presidente, evidentemente, não poderá julgar tais embargos monocraticamente. Aliás, sequer há prazo aberto, considerado o fato de que sequer houve publicação do acórdão.

Em se tratando de prisão cautelar, melhor sorte não resta ao PGR e a JB.

O Regimento Interno prevê que o Presidente poderá julgar questões urgentes no período de recesso.

Nada menos urgente do que o pedido de prisão de pessoas que responderam soltas a ação penal cuja sentença não transitou em julgado. É tão pouco urgente que Gurjô esperou calmamente o começo do recesso. Fosse urgente, teria interpelado o Presidente, na última sessão, e instado o Plenário a decidir sobre o tema.

Se minhas hipóteses estiverem corretas, e a preponderar a notícia de que o pedido do PGR está mesmo ligado à condenação, não é de se descartar a figura do crime de responsabilidade, pois tratar-se-ia de alteração, que não pela via de recurso, de decisão proferida pelo Tribunal.

Não que isso importe. Se a Constituição é o que o STF diz que é, o que dizer do Código de Processo Penal e do Regimento Interno?

Meros detalhes a decorarem o fim do mundo.

19 de novembro de 2012

Tá tudo dominado: a propósito da entrevista de Roxin

O grupo musical Furacão 2000 emplacou um hit repetido ad nauseam pelas rádios, dando ensejo a paródias diversas, chamado Tá Dominado. A letra é muito simples, tendo como forte o refrão: "tá dominado, tá tudo dominado".

Inevitável eu pensar nessa música toda vez que ouço a cantilena da teoria do domínio do fato, invocada pelo Procurador da República, empregada como ratio decidendi por alguns Ministros e papagaiada aos quatros ventos pela imprensa brasileira. 

De fato, tá tudo dominado. 

O STF não vai recuar um único milímetro com a afirmação de Claus Roxin atestando o óbvio: a teoria do domínio do fato, na sua doutrina, não é um modo de condenar sem provas ou em nome do "tinha que saber". Nem que uma seleção de 11 penalistas alemães escalada por Cesare Beccaria (só de brincadeira, imaginemos Feuerbach, von Liszt, Beling, Radbruch, Welzel, Mezger, Jescheck, Roxin, Hassemer, Neumann e Tiedemann) entrasse na reunião do Pleno afirmando que a teoria do dominío do fato não aplica à ação penal n. 470, ainda assim o STF não recuaria nem um milímetro em sua posição.

A mídia não vai recuar um único milímetro com a afiirmação de Claus atestando o óbvio. Para tanto, seria preciso colocar em questão o principal fundamento (?) da condenação de José Dirceu, o Lord Valdemort da opinião publicada.

As fundamentações das sentenças penais não vão recuar um único milímetro com a afirmação de Claus atestando o óbvio. O julgamento da AP 470 ao vivo e em cores escancara algo já sabido pelos operadores do sistema: o juiz forma sua convicção e corre atrás de uma fundamentação. O Ministro Eros Grau o assumia publicamente. Não vou debater se deve ser assim ou não. A mim interessa mais o que pode servir como fundamentação e qual o limite da relação jurisprudência e doutrina. Ao juiz simpático à teoria do domínio do fato tal como manejada pelo STF, caberá recuar diante do que disse Roxin? Ele está de alguma forma dependente dos contornos que a doutrina oferece a um instituto? Tenho que sim, em parte; mas pouco importa, pois eles, em peso, entendem que não.

Tudo continua como dantes no quarte de Abranches. Os que desconfiavam do uso da teoria do dominínio do fato, Roxin apenas reforça aquela sensação; aos seus defensores, caberá sempre esposar uma variação da teoria ou iniciar a doutrina brasileira da teoria do domínio do fato; aos jornalistas, contaminar o que disse Roxin, fazendo-o parecer comprado pelos advogados de Valdemort, por meio da contratação de um parecer ou de uma assessoria.

Tá tudo dominado.