Diz
a Constituição que todo poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido. É
esse mandamento primeiro que informa os direitos individuais e coletivos nela
contidos.
Disso
não decorre nem um sistema plebiscitário, tampouco puramente majoritário. Não é plebiscitário porque os agentes
políticos exercem mandatos, isto é, podem executar as atividades estatais em
nome do povo, sem ter que consultá-lo a todo tempo. Não é puramente majoritário
porque um sistema sem respeito às minorias se degenera em ditadura da maioria.
Entra-se, por exemplo, no campo das cláusulas pétreas, garantias
constitucionais imutáveis, precisamente porque fundamentais ao nosso Estado
Democrático de Direito.
O
Judiciário também exerce o poder em nome do povo. Seu mandato não é eletivo,
porém decorre da Constituição: a ele incumbe aplicar a Lei, nos seus estreitos
limites, e sempre fundamentando qualquer decisão. A fundamentação, tenho para
mim, é a mais importante garantia constitucional, pois é no exercício desse
dever que a decisão alcança o nível de judicial, separando-se da opinião, do
achismo e do capricho.
O
exercício do poder em nome do povo encontrou diversos matizes no julgamento da
Ação Penal n. 470. Houve uma dimensão populista (para agradar o povo,
confundido com a opinião publicada); uma dimensão moralista ou eticizante (para
educar o povo); uma dimensão autoritária (apropriação pelo pessoa do poder
investido no seu cargo); e uma dimensão propriamente jurídica (em nome do poder
que o povo lhe conferiu de aplicar a Lei).
Tenho
que apenas a última merece o status de
republicana.
Afirmações
do jaez de “meu conhecimento de juiz é suficiente para aferir a verdade de uma
acusação, independente das provas” é exemplo claro de autoritarismo. Coloca-se
ao largo, senão acima da Lei, como preclaro conhecedor onisciente. Frustra a
Lei tal como aqueles a quem condena.
Moralista
ou eticizante são as fundamentações que dão maior valor ao papel educativo do
julgamento do que à força das provas, muito recorrentes do voto do Ministro
Ayres Britto.
O
populismo se faz sentir na troça ao direito de defesa, incutindo nos
expectadores desse julgamento-espetáculo uma espúria aproximação simbólica
entre o réu e seu advogado, em processo alquímico de transformação de defesa em
co-autoria.
Excepcionalmente,
aplica-se a Lei.
O
resultado é per se nefasto. O que
dizer de um Poder capitaneado por um grupo de magistrados que, em nome de uma
perversa noção de accountability,
trocou a Lei pelo Status, pela Moral ou pelo Voluntarismo?
Se
isso não bastasse, dois ditados populares me socorrem na ilustração dos
efeitos: “pau que bate em Chico, bate em Francisco” e “onde passa boi, passa
boiada”.
Choverão
decisões “fundamentadas” na AP 470 em que (i) elementos do tipo poderão ser
excluídos em nome da moralidade (a exemplo do ato de ofício para o delito de
corrupção); (ii) o ônus da prova da inocência será transferido ao réu; (iii) a
mera condição de juiz substituirá a necessidade de provas; (iv) qualquer
destino dado a recursos ilícitos será considerado lavagem, em verdadeiro delito
dois-em-um; (vi) qualquer um em posição hierárquica superior responderá pela
"doutrina brasileira" da teoria do domínio do fato; (vii) as
alegações defensivas serão consideradas “abobrinhas”.
Em
nome de quê?
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